quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Na Coreia do Norte, rádio é janela para o mundo livre


Emissora em Seul faz programas para norte-coreanos ávidos de notícias não manipuladas pelo regime de Pyongyang. Escuta é clandestina e perigosa, mas, mesmo assim, "muitos decidiram fugir por causa dos nossos programas".O horário nobre é entre uma e três horas da madrugada, quando está escuro e o risco de ser flagrado é menor. É nesse período que as pessoas se reúnem em torno de seus aparelhos de rádio, conta Kim Seung Chul. Pois é enorme a sede por notícias não manipuladas pela propaganda do regime norte-coreano - como os programas que o diretor da North Korea Reform Radio e seus funcionários produzem em Seul e transmitem por ondas curtas para o país vizinho.

A estação radiofônica existe desde o fim de 2007. Recentemente Kim falou sobre seu trabalho num evento do Memorial Hohenschönhausen, em Berlim - um lugar com muros e cercas, como sua terra natal, comentou. Ele está fora da Coreia do Norte há mais de 20 anos e, antes de fundar a rádio, trabalhou no Instituto de Estudos Norte-Coreanos.

Para ele, a missão é clara: "Nós nos concentramos em transmitir à Coreia do Norte informações que possam levar a um questionamento do sistema. O fato de as pessoas ficarem acordadas à noite para nos ouvirem mostra como é grande o desejo dos cidadãos norte-coreanos de mudar algo."

De engenheiro e lenhador e jornalista

Kim Seung Chu, de 56 anos, não estudou jornalismo, mas engenharia civil. Porém, como o dinheiro não bastava para sustentar a si e à família, ele fez o que muitos norte-coreanos fazem, na esperança de uma vida melhor: em 1991, foi para a Rússia trabalhar como lenhador. Há dezenas de milhares desses casos. Segundo estimativas da ONU, todos os anos eles engordam o caixa do regime em cerca de 2,3 bilhões de dólares.

Seguindo a estratégia usual de Pyongyang, Kim teve que deixar para trás esposa e filhos, já que "somente trabalhadores que têm família podem ser enviados para o exterior, para reduzir o risco de fuga". Ele aguentou por dois anos, mas aí fugiu pela Sibéria para a Coreia do Sul, onde vive desde 1994, longe da família.

A indagação sobre seus parentes lhe é dolorosa, e ele responde de forma evasiva: "Há notícias isoladas sobre a situação da minha família, mas nenhuma é confirmada. Eu não sei como eles estão." Como no país vale o princípio da punição coletiva, é bem possível que a família tenha sido enviada para um dos conhecidos campos de trabalho forçado, para pagar pela fuga de Kim.

Tradição e censura na TV norte-coreana

Na Coreia do Norte, o consumo midiático também é punido, excetuadas as poucas emissoras estatais. A emissora KCTV é o veículo norte-coreano mais conhecido no exterior, com suas apresentadoras em trajes tradicionais que, dependendo da ocasião, anunciam o que tenham para anunciar aos prantos, enfurecidas ou cheias de grandiloquência patética.

"O teor informativo é extremamente baixo, e o leque não é diversificado", comenta Kim Seung Chul. "Em princípio, o programa consiste de mensagens de propaganda para exaltar o líder. Kim Jong-un é retratado como pai ou professor do povo, pode-se falar até de endeusamento." Além disso, pouco se fala sobre outros assuntos, como, por exemplo, esportes ou cultura. Mas, mesmo nessas áreas, a intenção é sempre comunicar a fidelidade ao regime.

Além da KCTV, há dois canais privados, mas que só são recebidos na capital, Pyongyang, prossegue Kim. Mesmo nesses, tudo o que se transmite passa antes pelo crivo do regime. "Quem vive na fronteira com a Coreia do Sul pode, ainda, pegar o sinal da TV sul-coreana, mas os controles na região são ainda mais rígidos do que em qualquer outra parte do país."

Informação em DVD, pen-drive, SD

Porém, a necessidade é a mãe da invenção, lembra Kim. Assim, os norte-coreanos estão sempre procurando novas maneiras de obter as informações inacessíveis por vias oficiais.

"De acordo com minhas informações, há no país até 3,5 milhões de usuários de celular. Mas o controle dos telefones é relativamente rigoroso. Para se poder ver certas coisas, é preciso obter uma licença. Desse modo se controlam os conteúdos a que a população tem acesso. Porém, a função bluetooth foi eliminada, e o slot para cartão SD não pode ser usado."

Apesar da proibição, por algum tempo os leitores de DVD portáteis eram muito populares como meio de obter informações do exterior. Mas atualmente a preferência é por pen-drives e cartões de memória micro SD. Kim estima que cerca de 5 mil desses suportes estejam em circulação na Coreia do Norte. Eles têm uma vantagem decisiva: são extremamente pequenos e, portanto, fáceis de esconder.

Rádio como janela para o mundo

O rádio também tem importância central na luta pela informação: no país se encontra de tudo, desde antigos rádios transistores até modernos dispositivos com semicondutores. Mas, como no caso da televisão, só são permitidas as estações estatais.

"Os equipamentos são configurados de forma que não se possa escolher livremente a emissora, eles são previamente controlados e devidamente preparados. Devido à vigilância rígida, é também difícil entrar com aparelhos no país. Mas, desde que um grande número de rádios entrou na Coreia do Norte, vindos principalmente da China, nos últimos anos o número de ouvintes aumentou muito."

Kim Seung Chul estima que os programas da Rádio Reforma alcancem até 1,5 milhão de cidadãos da Coreia do Norte, mas não há números exatos. "Poderia haver muito mais ouvintes. Mas, por causa do medo dos cidadãos, não temos tanta influência como gostaríamos de ter. Quem é flagrado escutando programas proibidos corre o risco de acabar num campo de trabalho. Por isso, muitos norte-coreanos relutam em usar o acesso à mídia estrangeira."

Alguns, porém, não se deixam intimidar. Sua sede de conhecimento é tão grande que eles estão sempre à procura de novos esconderijos para não serem denunciados por seus equipamentos - por exemplo, em buracos nas plantações de batatas ou nos potes do prato típico kimchi.

A serviço da verdade da dinastia Kim

Antigamente, Kim Jung Hyun era parte do sistema. Filha de um oficial superior, ela pertencia à elite do país e era considerada privilegiada. "Trabalhei para a rádio norte-coreana por um longo tempo", contou durante o evento em Berlim. Desde a mais tenra infância, ela foi submetida a uma lavagem cerebral. "Até onde consigo me lembrar, eu tinha um ódio absoluto pelos EUA e estava convencida de que a família de Kim Il-sung tinha salvado a Coreia do Norte."

Um sonho seu se tornou realidade ao ser contratada como apresentadora de rádio. "Pensei: finalmente tenho a oportunidade de difundir a verdade. Por muito tempo eu achava que o governo norte-coreano defendesse a justiça."

Os norte-coreanos são diariamente treinados para serem leais e até a sacrificarem suas vidas pelo regime, caso necessário. "Chega ao ponto de as pessoas irem salvar um retrato de Kim Il-sung, em meio a um naufrágio ou se há um incêndio em casa. Eles arriscam suas vidas até mesmo por uma foto dele", comentou Kim, hoje com 58 anos de idade.

Os lados mudaram

Em 2008, Kim Jung Hyun fugiu de seu país e vive desde 2012 na Coreia do Sul. Hoje, trabalha na North Korea Reform Radio. Dois fatores a levaram a essa decisão: "Por longo tempo, pensava que em todos os países as coisas fossem iguais à Coreia do Norte." Em algum momento, contudo, passou a consumir também mídias estrangeiras.

"Escutava programas na rádio sul-coreana e assistia a DVDs e CDs-ROM contrabandeados da China, a filmes e séries sul-coreanos. No início, o conteúdo me perturbava, mas depois fui ficando cada vez mais fascinada por esse mundo estranho."

O segundo motivo por que Kim Jung Hyun decidiu deixar seu país é pessoalmente triste: "Meu pai morreu em 2006. Ele, que foi condecorado com inúmeras medalhas e trabalhou toda sua vida para a liderança norte-coreana, morreu de fome! Isso foi uma lição para mim: prometi que nunca ia morrer assim, desvalorizada, como ele."

Ela culpa a liderança em Pyongyang pela morte do pai. "Eles também são culpados por tanta gente tentar deixar o país. Mas nunca admitiram que suas políticas estavam erradas."

Contribuição com mudanças na Coreia do Norte

Kim Jung Hyun tirou suas conclusões e fugiu, assim como Seung Chul, anos antes. Com seus programas de rádio, ambos esperam contribuir para que, no longo prazo, algo mude na Coreia do Norte.

"Muita gente no país não acredita mais no que é difundido oficialmente pelas mídias estatais. Pode variar de acordo com o nível de educação, mas ninguém mais acha que a Coreia do Norte é o país onde a população vive melhor", explica Kim Seung Chul. Assim, há uma explicação para que a liderança comunista se mantenha no poder: "O regime só está funcionando até hoje porque o controle e a persecução penal são tão drásticos que ninguém ousa contradizê-lo oficialmente. Com esses instrumentos, ele se mantém vivo."

Por isso, do ponto de vista do regime, cidadãos bem informados também são um perigo e representam uma ameaça ao poder absoluto. "Quanto mais gente tomar conhecimento de como funciona o resto do mundo, de quais direitos e liberdades os outros gozam, menor será a disposição de se manter fiel à própria liderança." Disso, Kim Seung Chul está plenamente convencido, até por ter vivenciado na pele a situação.

Nesse ínterim, os programas da North Korea Reform Radio já tiveram um impacto direto, pelo menos em pequena escala. "Conheço pessoalmente uma dezena de refugiados que me disseram, após chegarem à Coreia do Sul, que decidiram fugir por causa dos nossos programas." São precisamente essas histórias que motivam Kim Seung Chul a continuar.

FONTE: PORTAL TERRA
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