Por Fernando Morgado.
Durante vários anos, trabalhei com um importante comunicador que dizia: “Meu programa é uma missa: todo mundo sabe a hora que levanta, senta e ajoelha!”. Líder de audiência há várias décadas, ele desenvolveu uma fórmula tão eficiente que os ouvintes são capazes de saber se estão atrasados ou não para os compromissos apenas pelo instante em que os quadros e vinhetas entram no ar. E, de tão forte, esse hábito passa de geração para geração.
Hábito. Construí-lo é um dos principais objetivos de qualquer profissional que trabalha com audiência. Ainda que o dinamismo reinante nas redações e salas de produção desperte em muitos o desejo de mudar a programação dia sim, outro também, fato é que não se constrói uma rádio de sucesso sem constância, disciplina, estratégia, sensibilidade, talento e, sobretudo, paciência. Muita paciência. Afinal, é preciso convencer todos os dias o ouvinte a ligar (e permanecer ligado) naquela mesma hora, naquela mesma atração, naquela mesma emissora. Trata-se de um esforço contínuo, quase eterno.
Após estudar o público e suas demandas, desenha-se uma grade que atenda a essas demandas. Feito isso, é preciso esperar para ver os resultados. Isso acontece em todos os meios, mas, no rádio, tal espera é ainda mais importante, visto que, nas praças atendidas pela Kantar Ibope Media com pesquisas regulares, os dados se referem a trimestres móveis. Por exemplo: o que comumente se trata como dado de março se refere, na verdade, ao período entre os meses de janeiro a março. Nas chamadas praças especiais, torna-se ainda mais importante esperar, pois os dados chegam de forma esporádica.
É certo que os indicadores oferecidos pelas redes sociais são mais ágeis, entretanto, eles não podem ser adotados como única referência na hora de desenhar uma grade de programação. Cada rede dedica-se a um perfil específico de público e esse perfil, em muitos casos, não coincide com o da rádio. Pense bem: será que o enxame de publiposts no Instagram, de dancinhas no TikTok e de fãs de K-pop no Twitter traduzem os interesses do público em geral?
Entre muitas outras coisas, rádio é promessa. Toda emissora promete exaustivamente que oferecerá a melhor informação, os melhores locutores, as melhores músicas, os melhores prêmios. E mais: promete que entregará tudo isso sempre. Quebrar a regularidade da programação, portanto, é quebrar uma promessa, um pacto com o público que, sentindo-se traído, poderá marchar rumo à concorrência. É claro que imprevistos acontecem e um plantão do jornalismo pode se fazer necessário. Isto, porém, não deve ser confundido com a transmissão infrequente de determinado conteúdo que você prometeu entregar sempre.
Por fim, mas não menos importante, há também o aspecto comercial. Em última análise, emissoras ganham dinheiro vendendo tempo. Sendo assim, quem não respeita horários desvaloriza seu produto e, por conseguinte, perde dinheiro. Como o anunciante investirá em um conteúdo que ele não tem confiança que será de fato veiculado?
Para que os ouvintes tenham o hábito de ouvir a sua rádio, você deve:
- Estudar e pensar muito antes de montar sua grade, diminuindo as chances de futuras alterações;
- Investir na melhoria contínua dos programas, acompanhando o desempenho deles de perto;
- Saber interpretar corretamente os dados de pesquisa, valendo-se de técnica e, sobretudo, sangue frio;
- Cultivar a paciência para esperar o tempo necessário até que os números reflitam alguma tendência;
- Se, de fato, as perspectivas não forem boas, planejar a mudança de forma cuidadosa, desenhando, inclusive, a estratégia de comunicação junto ao público, a fim de mitigar as possíveis (e prováveis) reações negativas que virão.
Conforme escrevi no começo deste texto, são muitos os que determinam suas rotinas a partir dos horários das emissoras. Este é, sem dúvida, um dos maiores reconhecimentos que se pode conseguir de um ouvinte. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma honra e de uma enorme responsabilidade determinar quando alguém fará alguma coisa. A centenária história de sucesso do rádio foi escrita com criatividade e inovação, mas também com inteligência, prudência e, sobretudo, respeito. E isso passa pelo zelo com a grade de programação que, mesmo em tempos de on demand, continua sendo o principal modelo de oferta e consumo de conteúdo.
Sobre Fernando Morgado
Consultor e palestrante. Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso. Coordenador adjunto do Núcleo de Estudos de Rádio da UFRGS. Membro da Academy of Television Arts & Sciences, entidade realizadora dos prêmios Emmy. Possui livros lançados no Brasil e no exterior, incluindo o best-seller “Silvio Santos: a trajetória do mito” (5ª edição em 2017). É um dos autores de “Covid-19 e comunicação: um guia prático para enfrentar a crise” (2020), obra publicada em português, espanhol e inglês. Mestre em Gestão da Economia Criativa e especialista em Gestão Empresarial e Marketing pela ESPM. Site: fernandomorgado.com
FONTE: AERP