sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Cem anos do rádio no Brasil: a relação histórica do rádio e esporte


O jogo amistoso entre as seleções do estado de São Paulo e do Paraná realizado no dia 19 de julho de 1931 cairia, com toda certeza, no esquecimento dos amantes do futebol se não fosse um detalhe: foi neste dia que a Rádio Educadora Paulista transmitiu, por meio de Nicolau Tuma, a primeira partida completa de futebol da história do Brasil com a identidade que conhecemos.

É fato que há registros datados da década de 1920 de transmissões esportivas no Rio de Janeiro. Porém, pesquisadores apontam que a narração de Tuma pode ser considerada como marco nas transmissões esportivas do Brasil por ser uma narração completa, lance a lance. Em depoimento veiculado em programa especial da Rádio MEC sobre 100 anos de rádio no Brasil, o próprio Nicolau falou da importância da data: 

Havia transmissões, mas transmissões do que? Era uma reportagem feita no campo. Não com aquela rapidez, velocidade de acompanhamento da bola. Eu comecei isso em 1931, a reportagem "tim-tim por tim-tim", passe por passe, diretamente transmitida por imagem, com emoção de torcedor, de quem acompanha a bola e gol. O gol, então, é uma delícia.  

"Imagine uma caixinha de fósforo ou um retângulo. Divida ao meio e teremos os dois lados do campo". Era essa a alusão utilizada pelo Nicolau Tuma para começar a narrar a partida, que terminou 6 a 4 para os paulistas”, conta o jornalista e pesquisador Bruno Micheletti. Foram com palavras como estas que o locutor fez com que a imagem de uma partida de futebol fosse criada nas mentes dos ouvintes no início dos anos 30.

O que basicamente se tinha nos anos de 1920, no rádio, eram notícias sobre os jogos, geralmente se fazia a leitura de telegramas que chegavam às rádios com informação sobre resultados. No Rio de Janeiro, Amador Santos é um nome que se destaca na história das transmissões esportivas. Esse narrador segundo relatos da época possuía um estilo calmo de narrar e enfrentou muita resistência por parte de dirigentes de clubes do Rio de Janeiro.

Essa resistência se deve ao fato de se temer que as transmissões por rádio fizessem com que o público deixasse de frequentar os estádios, o que traria prejuízo financeiro devido à queda de arrecadação na venda de ingressos. Há autores sobre a história do rádio no Brasil que creditam a Amador Santos a primeira transmissão esportiva do país que teria sido feita pela Rádio Clube do Brasil, o que teria acontecido ainda nos anos de 1920. 

Porém, a autora Edileuza Soares no seu livro A Bola no Ar, demonstra, a partir de cuidadosa coleta de dados, que o pioneirismo cabe a Nicolau Tuma em São Paulo. Em 1931 Nicolau Tuma faz a primeira transmissão direta de futebol, uma transmissão de lance a lance do jogo. Ele é o primeiro locutor a transmitir durante 90 minutos uma partida de futebol diretamente do estádio. E assim é lançada essa possibilidade, construindo desse modo, no Brasil, a tradição de se transmitir jogos ao vivo. Tradição que obviamente foi se modificando à medida que novas técnicas narrativas e de transmissão radiofônica. 

É possível que tenha havido outros locutores que tenham feito transmissões, antes de Nicolau Tuma, mas a diferença fundamental da transmissão feita por Nicolau reside no fato de ter narrado lance por lance de um jogo. O jogo em questão foi uma disputa entre as seleções dos estados de são Paulo e Paraná, ocorrido no campo da Chácara da Floresta, em São Paulo. Nicolau é um pioneiro na criação de uma técnica de se narrar futebol enquanto a partida era realizada.

Com limitações técnicas, Nicolau Tuma e outros locutores dos primórdios tiveram que realizar verdadeiros malabarismos para transmitir as partidas. Na época, as intempéries para quem queria transmitir um jogo de futebol não eram poucas.

“Não era fácil de conseguir uma linha telefônica para se fazer uma transmissão. Às vezes era necessário contar com ajuda da vizinhança ao redor dos estádios que pudessem ceder uma linha telefônica. Enfim, a gente estava longe de ter condições razoavelmente apropriadas para transmissão em um estádio”, conta a professora e pesquisadora de esporte Leda Maria da Costa.

Em alguns casos, sequer era permitido entrar nos estádios. A proibição gerou situações pitorescas. Ainda nos anos 1930, o locutor Amador Santos chegou a ter que transmitir uma partida de futebol (um clássico entre Flamengo e Fluminense), de acordo com o livro “Bastidores do Rádio: Fragmentos do Rádio de Ontem e de Hoje", do radialista Renato Murce, do telhado de um galinheiro dos arredores do estádio de São Januário, no Rio de Janeiro.

Na hora da locução, também havia obstáculos. O locutor não tinha a figura do repórter e do comentarista e não havia espaço para publicidade no meio das partidas. Essas limitações eram dribladas pela criatividade de quem transmitia e ajudaram Nicolau Tuma a moldar o estilo radiofônico que conhecemos hoje.

“A preocupação do Nicolau era que tinha que preencher todo o tempo da transmissão com palavras por que ele imaginava que qualquer momento de silêncio poderia fazer com que as pessoas desligassem o rádio ou mudassem de estação”, conta Leda Maria da Costa. O ritmo frenético chegava a 250 palavras ditas, de forma clara, por minuto.

O professor e pesquisador Márcio Guerra destaca o pioneirismo da forma de narrar do locutor, que a partir de 1932 passaria a se destacar na Rádio Record de São Paulo: “Foi o primeiro narrador a dar o ritmo que a gente conhece hoje nas coberturas esportivas pelo rádio. Foi por isso que recebeu o nome de speaker metralhadora”, diz.

O que era desconfiança no começo passou, mesmo com os contratempos, a cair no gosto das pessoas. O espaço esportivo passou (no período do início da profissionalização e autorização da publicidade radiofônica) a atrair anunciantes e, consequentemente, recursos. Nesta evolução, o ano de 1938 foi um marco.

A primeira Copa do Mundo transmitida para o Brasil

Em 1938, o esporte já começava a ter espaço cativo na programação do rádio e o futebol também dava os primeiros passos como atividade profissional. Naquele ano, a França sediou a terceira Copa do Mundo da história. Até então, o Brasil tinha tido participações discretas (6º lugar em 1930 e 14º em 1934). O 3º lugar colocou o país no mapa do futebol mundial.

A campanha histórica pode, pela primeira vez, ser acompanhada pelos brasileiros via ondas de rádio e em tempo real. As Emissoras Byington (Kosmos, de São Paulo, Cruzeiro do Sul, do Rio de Janeiro, Clube, de Niterói, e Clube, de Curitiba), na figura do locutor Gagliano Neto, transmitiram as partidas da seleção brasileira por meio da chamada Rede Verde-Amarela.

Assim como nas primeiras transmissões no Brasil, a cobertura da Copa de 1938 pelas Emissoras Byington enfrentou barreiras. “Além da transmissão internacional, dentro do país existia uma precariedade das linhas telefônicas. Para piorar, a Byington também enfrentou problemas com Getúlio Vargas, que via com desconfiança a formação de uma rede de emissoras transmitindo um mesmo conteúdo e, portanto, também alcançando um número maior de pessoas”, relata Bruno Micheletti.

Dificuldades à parte, a cobertura da Copa na França, se tornou histórica. As transmissões eram acompanhadas, inclusive, em alto-falantes instalados em praças públicas. “É uma transmissão muito importante no que diz respeito a essa reconfiguração da relação que o país vai ter com as Copas do Mundo, com a seleção brasileira. É um marco na história das transmissões do rádio esportivo”, diz Leda Maria da Costa.

Lígia Freitas, filha de Gagliano Neto, conta que o pai se orgulhava do pioneirismo. "A transmissão da Copa em 1938 foi um marco importante na história do futebol no Brasil, sim! Ele tinha noção e se orgulhava desse feito", afirma.

Ela lembra que o pai chegou a ter que narrar uma partida de cima de um telhado.  "Foi uma aventura! Ele foi ousado na transmissão por telefone!", relata a Lígia. 

Com o espaço aberto, outras coberturas de Copas do Mundo via ondas de rádio marcaram história. Doze anos e uma guerra depois, o Brasil sediava a sua primeira Copa do Mundo da história. O público pode acompanhar as partidas nos estádios e, fora dele, rádios como a Nacional (a maior do país na época) fizeram transmissões. O Brasil chorou ao ouvir a derrota para o Uruguai na final da competição.

Depois do terceiro lugar em 1938 e do segundo lugar em 1950, o Brasil conquistou a primeira Copa do Mundo em 1958. Naquele ano, a rádio Nacional também fez a transmissão das partidas, mas a transmissão que chamou atenção foi da “Cadeia Verde-Amarela Norte-Sul do Brasil”, liderada pela Rádio Bandeirantes.

A transmissão em rede, que havia sido feito de forma tímida em 1938 (com as emissoras Byington) e foi melhorada em 1950 (com iniciativas como da Nacional), alcançou outro patamar em 1958. A cadeia de rádios foi formada por nada menos do que 400 emissoras. Na final, contra a Suécia, a rádio Bandeirantes alcançou a maior audiência de sua história.

“Indiscutivelmente, Fiori Gigliotti com essa ideia da Cadeia Verde-Amarela foi muito importante e acho que é um marco significativo porque ela demonstrou a possibilidade das emissoras entrarem em cadeia para transmissão dos eventos esportivos e isso é perdura até hoje. Essa iniciativa foi muito importante e decisiva para a evolução do rádio esportivo brasileiro”, destaca Márcio Guerra.

Mesmo com o advento das transmissões de jogos na televisão, por meio de VTs, as Copas do Mundo de 1962 e 1966 ainda eram acompanhadas, prioritariamente, pelo rádio. Foi em 1970 que este quadro começou a mudar.

A concorrência da TV e novas formas de fazer rádio

A transmissão da Copa do México, que rendeu o tricampeonato para a seleção brasileira, foi a primeira vista, ao vivo, pelas telas da TV. À época, se acendeu o debate sobre como a TV poderia “acabar com o rádio”. Isso mudou com o passar do tempo.

“O rádio recebeu a televisão, inicialmente, como uma ameaça, mas depois percebeu facilmente que era possível a convivência entre os dois veículos e, principalmente, que com a sua força, especialmente no jornalismo esportivo e narração dos jogos, o rádio não perderia essa relevância”, relata Márcio Guerra.

Uma das estratégias para o rádio foi atuar em complementariedade com a televisão. Foi isso que a rádio Record fez na Copa do Mundo de 1982, disputada na Espanha. Com os direitos de transmissão comprados com exclusividade pela TV Globo, a Record resolveu chamar os ouvintes para escutar a rádio enquanto assistia aos jogos na televisão.

Silvio Luiz, narrador da emissora na época, relata que a ideia foi de Rui Viotti, um dos chefes do grupo Record: “Com isso foi feita uma campanha para se abaixar o som e escutar o jogo pela Record”.

Com o slogan “Olhos na TV, coração na Rádio Record”, a equipe de esportes teve que se adaptar para “sincronizar” a narração com a TV. “Eu ficava na Espanha com a imagem do jogo e quando aparecia uma imagem exclusiva da Globo na TV, me avisavam e eu narrava em cima da imagem que iam falando”, conta Silvio Luiz.

É claro que a emissora não conseguiu os mesmos índices de audiência da TV. Porém, relatos apontam que a estratégia fez com que a Record vencesse concorrentes do segmento rádio. Até hoje, a estratégia é utilizada. O narrador Edson Mauro da rádio CBN do Rio de Janeiro, por exemplo, adota até hoje o bordão “olho na telinha, ouvido na caixinha”.

Edson Mauro conta que o bordão surgiu na metade dos anos 1990 com o intuito de incentivar o hábito de assistir na TV e ouvir no rádio. "O torcedor percebia que o relato dos narradores, através do rádio de pilha e agora dos celulares, é mais rico em informações e passa a sensação de se estar no estádio. Ouvir as narrações pelo rádio à frente do aparelho de TV consagram o bordão histórico do grande Waldir Amaral na Rádio Globo: é como se você estivesse à beira do gramado", diz.

Não foi apenas como “complemento” que o rádio esportivo sobreviveu à chegada da TV. O fato de nem todos os jogos serem transmitidos, da TV não ser um eletrodoméstico, por assim dizer, portátil e da narração radiofônica ainda carregar uma emoção que cativa algumas pessoas fez com que emissoras ainda continuassem transmitindo jogos históricos.

Pela TV e pelo rádio, o Brasil viu a seleção ser tetra e pentacampeã. Foi aí que o crescimento do acesso à internet e o streaming forçaram mais uma adaptação por parte de quem fez esporte pelo rádio.

A internet e o início da migração do rádio esportivo

A internet surgiu como uma concorrente a mais (além da TV, que em canais fechados aumentava o número de partidas transmitidas) para o rádio esportivo, mas proporcionou uma nova tendência: as transmissões ao vivo em plataformas como o YouTube.

Uma das experiências mais bem sucedidas do momento é a da rádio Jovem Pan. Parte da programação esportiva da emissora é transmitida (com som e vídeo) para o canal Jovem Pan Esportes. A página tem cerca de 3,4 milhões de seguidores e 1,6 bilhão de visualizações desde 2015 (período da criação do canal).

Wanderley Nogueira, jornalista e diretor de esportes da rádio Jovem Pan, cita que a “ida para internet” causou espanto, mas foi bem sucedida. “Faz vários anos, a Jovem Pan começou a transmitir as narrações como imagem dos locutores. Foi um "espanto" para todo mundo naquele momento. O tempo passou e esse recurso é seguido por emissoras de todo o país”, afirma.

Ele acredita que, independentemente da plataforma, o conteúdo é que vai prevalecer. “O rádio - junto com TV/Internet/Streaming - vai continuar levando informação, opinando, prestando serviços, oferecendo entretenimento e fazendo transmissões esportivas emocionantes”, diz.

A opinião é corroborada por pesquisadores. Márcio Guerra acredita que, mesmo com novas formas de se consumir conteúdo, o rádio e seu estilo vão continuar cativando pessoas. “A migração de alguns conteúdos para o YouTube é a prova de que as pessoas continuam admirando a linguagem e o estilo radiofônico. A internet é uma complementariedade e sinal que o rádio continua explorando novos espaços”.

“Mesmo com o rádio perdendo espaço para a TV ou internet, está longe de morrer. A rádio está tentando se adaptar a essas novas demandas de um público que tem outros hábitos e formas de acessar e consumir o futebol. O rádio vai se reinventando e aí vai se caminhando a história da comunicação esportiva”, aponta Leda Maria da Costa. 

Nesta nova fase, até os bordões estão sendo reinventados. Edson Mauro, por exemplo, "adaptou" a "caixinha" de seu bordão: "Hoje, a frase que narro está atualizada para "olho na telinha, áudio na caixinha... do tablet e do celular", conta.

FONTE: AGÊNCIA BRASIL

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