O ator Johnny Massaro, como o jornalista Luiz Antonio Mello, em cena do filme 'Aumenta que é rock'n'roll' — Foto: Divulgação/Mariana Vianna |
Certa noite em 2018, o jornalista Luiz Antonio Mello foi ao Teatro Rival, no Centro do Rio, a pedido do diretor Tomás Portella para prestar uma espécie de consultoria histórica, no que seria a abertura das filmagens de “Aumenta que é rock’n’roll” — filme que estreou nesta quinta-feira (25) nos cinemas.
Com muitas aventuras (verdadeiras, contadas por Luiz Antonio no livro “A onda Maldita”, base para o roteiro de L.G. Bayão), um bocado de rock e um tanto de romance (ficcionalizado), o longa acompanha o período em que o jovem jornalista e alguns amigos assumiram a direção de uma esquecida rádio em Niterói, a Fluminense FM, viraram a sua programação para o rock e inadvertidamente — como nos melhores contos de fadas — ajudaram a deflagrar uma revolução cultural no país, a bordo do Circo Voador e ao lado de bandas como Blitz, Os Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho e Legião Urbana.
Aquela ocasião no Rival era a noite em que se recriaria uma festa promovida pela Fluminense, no começo dos anos 1980, com shows dos ainda pouco conhecidos Paralamas e Legião. E aquela em que Luiz Antonio, então com seus 63 anos de idade, encontraria Johnny Massaro (26, naquela altura), o ator que o interpretaria no calor da fundação da “Maldita” — a alcunha pela qual a Flu passaria a ser conhecida em sua mítica fase rock pós-1982.
— Quando ouvi a primeira fala do Johnny, eu falei: “Pô, isso aqui é espiritismo!” Me deu um mal-estar, a impressão era de que eu tinha morrido e baixado nele — conta Luiz Antonio Mello. — Eu nunca imaginei que um ator com esse talento ia me interpretar. Naquela hora fiquei sem saber o que fazer e fui para o (bar e restaurante) Amarelinho tomar uma Coca-Cola. Só depois é que eu comecei a me habituar com a ideia de que existia um Luiz Antonio melhor do que eu.
O jornalista Luiz Antonio Mello, nos anos 1980 — Foto: Divulgação/Jurandir Noé da Costa
Já Johnny diz que foi uma grande sorte poder ter tido a seu lado, nas filmagens, “aquele cara que contribuiu para a construção mesmo de um de um cenário cultural musical nacional extremamente mais rico no Brasil.”
— A gente tentou de muitas formas assimilar essa energia dos anos 1980 dentro de todo esse processo de pesquisa. O Luiz estava muito próximo o tempo inteiro, sempre muito animado, sempre muito disposto, sempre muito enciclopédico — conta o ator. — Tentei focar na energia do cara, nessa personalidade Lado B, que é neurótica, cheia de TOCs e manias, mas também muito determinada, criativa e sensível.
“Aumenta que é rock’n’roll” começou a existir em 2011, quando a produtora Renata Almeida Magalhães leu “A onda Maldita” e pensou em transformá-lo num filme. Entrou em contato com Luiz Antonio e descobriu que ele tinha acabado de vender os direitos para um cara de Niterói — era o roteirista L.G. Bayão, para quem aquele livro viraria o filme da sua vida. Numa conversa com Renata, ele concordou em revender os direitos, mas com a condição de que pudesse apresentar um tratamento de roteiro.
— E aí ele mandou o melhor primeiro tratamento que eu já vi na minha vida — conta Tomás Portella, de 45 anos, que ainda não havia ainda estreado em longas-metragens quando Renata o chamou para dirigir o filme.
O primeiro período que Luiz Antonio Mello passou na Fluminense FM, retratado em “A onda Maldita” (de 1982 até 1985, ano em que Blitz, Barão e Paralamas tocaram no Rock in Rio inaugural e a Legião lançou seu primeiro LP), persiste como lenda.
— A maioria das pessoas com quem eu falo hoje não era nascida quando a rádio entrou no ar. Pergunto como souberam da Fluminense, e é sempre por um pai ou tio que tinha uma fitinha ou disco da época — conta. — Acho que a coisa mais importante da rádio foi a franqueza, a espontaneidade. A Fluminense surgiu de uma forma extremamente emocional. A programação estava bem clara na cabeça da gente: era o que não estava tocando nas outras rádios. Umas coisas bem alternativas de rock, como Jimi Hendrix, Jim Morrison e Troggs, e as coisas que estavam chegando, com o punk.
Natal dos anos loucos
A falta de recursos (o equipamento vivia pifando e às vezes faltava dinheiro até para comprar agulhas de vitrola) e as constantes ameaças de fechamento da rádio palas autoridades do Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) eram contrabalançadas pela dedicação dos ouvintes, que invadiam as reuniões dos produtores, ligavam para conversar com as locutoras (sim, só havia vozes femininas, uma inovação da “Maldita”) e ainda mandavam fitas demos de suas bandas.
— Isso aí criou uma intimidade que era como se a rádio fosse uma entidade que morasse no quarto do cara — diz Luiz Antonio, recordando-se dos tempos loucos. — Uma vez, em dezembro, a gente estava conversando sobre o que as pessoas faziam no dia 25. Aí começamos a delirar em uma promoção completamente camicase com a banda Bacamarte, que tinha um disco chamado “Depois do fim”. Programamos um show deles no Circo Voador com o slogan: “Dia 25 de dezembro, vamos nos deprimir juntos!” Esperava 300 pessoas, apareceram cinco mil.
Fauna de ácaros
Com um elenco que acabou sendo escalado entre atores da escola de teatro Tablado, todos velhos amigos, Tomás Portella diz ter conseguido montar um time que “está em cena de verdade, com uma coisa que ultrapassa a técnica”. Depois de gravar todas as externas, ele partiu para as cenas da rádio, cujo cenário foi montado em uma salinha comercial no Centro do Rio, com carpete que abrigava uma fauna de ácaros e teto faltando pedaço de placa — bem como eram os estúdios da “Maldita”.
— Eu realmente tive a sensação de que a gente virou funcionário da Fluminense, a gente passava o dia inteiro lá naqueles cenários, um fazendo figuração na cena do outro — conta Marina Provenzzano, atriz de filmes como “A frente fria que a chuva traz” (de Neville de Almeida, no qual não só ela, mas também Johnny Massaro, estreou em longas) e “Legalize já”, debutando como protagonista em cinema na pele da locutora Alice, que vive um romance de idas e voltas com o Luiz Antonio de Johnny Massaro.
Alice foi uma ideia de L.G. Bayão, 47 anos, que “sentia falta de ter uma única história que carregasse o espectador, um fio condutor” e assim criou “essa personagem inspirada em cada uma das locutoras da Fluminense FM.” Tomás lembra bem do processo de seleção no qual descobriu Marina, candidata ao papel de outra locutora:
— Eu fui a essa leitura para escutar o Johnny, para saber se ele era mesmo nosso protagonista, e veio uma galera para ler junto com ele. A Marina tinha umas duas, três falas. Quando acabou a leitura, eu falei: “Cara, essa menina é nossa protagonista feminina!” A gente precisa de uma menina “Maldita”, e ela é de verdade, é maldita — diz o diretor que, um ano depois das filmagens, começaria a viver com Marina um caso de amor que perdura até hoje.
“Aumenta” traz a última participação em filmes da atriz Flora Diegues (1984-2019), filha da produtora do longa, Renata Almeida Magalhães, e do cineasta Cacá Diegues. Durante as filmagens, ela se recuperava de uma das operações a que tinha se submetido para tratar um câncer no cérebro.
— Flora era minha melhor amiga, mas também era muito amiga de todo o elenco. Quando ela morreu, a galera toda, umas 25 pessoas, fez uma mesma tatuagem do “Dear NASA”, que era uma carta que ela tinha escrito para a Nasa, de um projeto que ela queria fazer. Acho que um pedação daquilo que acontece ali entre a gente é muito por causa dela — emociona-se Marina Provenzzano.
Os atores Joana Castro (à esq.), Marina Provenzzano, Silvio Guindane, Flora Diegues e Johnny Massaro em cena de "Aumenta que isso é rock'n'roll" — Foto: Divulgação/Mariana Vianna
Boa parte do tempo que o longa, com coprodução da Globo Filmes, levou das filmagens, em 2018, à estreia foi de processos burocráticos que Renata enfrentou. Entre os quais, aqueles para conseguir a autorização de uso das músicas no filme, nos quais contou com a ajuda das gravadoras (principalmente no caso de músicas estrangeiras) e dos artistas (a Legião Urbana, por sinal, marca presença ainda na trilha incidental, gravada pelo guitarrista Dado Villa-Lobos e por João Pedro Bonfá, filho do baterista Marcelo Bonfá).
— As bandas sabem o valor, a importância que a Fluminense teve na vida delas. Brinco que elas são apoiadoras do filme. Teve gente falando que, se não fosse a Fluminense, estaria até hoje tocando em churrascaria — conta Tomás Portella.